28 de abr. de 2011

Afoxé Gil!




Afoxé lê i, lê i lê ô!

Afoxé lê i, lê i lê ô!

Afoxé lê i, lê i lê ô!

Afoxé em nagô quer dizer, o sopro do pó, o pó soprado pela boca formando o som, o verbo, na Bahia, afoxé é outra coisa, na Bahia afoxé é bloco de carnaval, cordão de carnaval, uma coisa especial, uma coisa original, que é no carnaval, mas não é no carnaval, afoxé não é escola de samba, não é trio elétrico, não é frevo, não é marcha, é afoxé, afoxé, afoxé!

Vem do candomblé, candomblé, candomblé, candomblé, um bocado de preto, tudo vestido de branco, cantando umas invocação, umas melodia tudo com ritmo próprio, os atabaque batendo, os agogô cantando, e eles invocando os orixá, então é uma coisa religiosa no carnaval, por isso que eu disse que é no carnaval mas não é do carnaval, o afoxé, vem pro carnaval cantar as tradições religiosas dos preto, da Bahia, outro dia, eu tive com Didi, o filho de sinhora, sinhora foi uma das maiores babalorixas que já teve na Bahia, salvo menininha que tá inda vindo lá, minha mãe, minha mãe menininha, ai minha mãe, menininha do cantôa, ai minha mãe,minha mãe menininha do cantôa!

Pois é, Didi tava me dizendo que o primeiro afoxé que teve, foi ele que boto na rua, ele e os amigos dele, e se chamava filhos de Gandhi, eu perguntei:

_Didi, porque essa história de Gandhi, essa coisa oriental?

Ele disse:

_ Eu não sei, deu na veneta do pessoal.

O afoxé é assim, as mulé de bahiana né? tudo de branco e os homí com uns turbante, umas tunicas carregando umas alegorias, uns elefantes, uns camelos, umas coisas tudo oriental. Uma mistura assim de norte da áfrica com índia, um negocio parecido com Jorge Ben, é , é a coisa mais parecida com isso que tem, é, podes crer. Quer dizer isso mesmo, e eles cantam aquelas coisas, aquelas invocação, então eu disse:

_ Mas, filhos de Gandhi?

Ele fez :

_ é!

Ai outro dia, depois que eu tive com Didi, eu tive umas informação sabe como é gente, sempre tem umas informação, a gente lê uns livros, a gente conversa com umas pessoas e a gente acaba sabendo de umas coisas, eu tive sabendo, que na Bahia, no fim do século passado, veio uns pretos quase perto da abolição, vieram uns pretos do norte da áfrica, da tribo dos malê, os índios malê, e eles acreditavam em Alá e falavam árabe, então eu disse:

_ Vai ver que afoxé deve ter alguma coisa com isso.

Didi me disse que Gandhi saiu no primeiro ano, ai saiu no segundo ano, no terceiro foi fazendo sucesso, as pessoas gostavam daquilo na rua, aquela coisa na rua, aquela brincadeira de carnaval, mas concentrada, tranquila, era uma espécie de procissão alegre, uma procissão em nome da alegria, em nome da euforia, em nome da brincadeira e ligado aos orixás, aos santos, da religião negra, que foi preservada lá na Bahia. Graças a deus!

Então, e agora o afoxé tá pra acaba, tá pra acaba. Didi me disse:

_ Gandhi foi crescendo, Gandhi ficou Grande, Gandhi ficou grande, Gandhi ficou grande, chegou a sair com duzento, trezento, quinhento até mil, e agora, tá pra acaba, depois de Gandhi surgiram muitos outros e ficaram importantes também. Deixa a vida de Quelé, Mercadores de Bagdá, Filhos de Obá e um bocado de uns outros pequenininhos também, que são mais bacana ainda, que tem uns caboclos, eles se veste de indio e saem dançando junto com as bahiana, é uma mistura danada, é tudo é... uma coisa, um.. pan..demonio.

_ E, agora tá tudo pra acabar, ameaçado, outro dia eu fui brincar na praça da sé, no carnaval que passou, ai eu tava lá brincando e de repente eu me lembrei do afoxé, tinha um rapaz assim do lado e eu perguntei pra ele:

_ Meu irmão, onde tá o afoxé? Me diga ai, você viu o afoxé. E ele fez:

_ Ah, o afoxé,aé tinha um hoje por aqui, passou ai mais cedo, deve tá pra lá.

Eu fiz:

_ Pá lá pra onde?

Ele fez:

_ Pra lá.

Eu fiz:

_ A onde?

Ele fez:

_ Vá!

Eu fui, mas ai eu já achei estranho, porque antigamente, quando ao afoxé tava na praça não tinha nada que procurar, o som enchia tudo, a gente chegava na praça e era aquele mundo de gente, era quatrocentos, quinhetos tudo vestido, aqueles turbantes, aquela maré branca no meio da praça da sé e aquelas cantigas de arrepia, as mulé:

Oxê-lê-i! Lê-í! Lê-ô!

Oxê-lê-í! Lê-í!Lê-ô!

E outras muito, tudo cantada em nagô e ioruba, ioruba era um dialeto que tem na Nigeria, de onde veio a maioria dos preto que tão na Bahia, da nação “gegê”, então eu fui.

Digo, mas estranho, antigamente não era assim, afoxé não tinha que se procurar, afoxé tava na praça, os atabaque batendo, os agogô cantando, a gente se arrepiando e aquela coisa mística no carnaval, quer dizer, o carnaval também já é uma coisa mística em si mesmo é claro, mas eu falo esse outro lado explicito, especifico, religioso, trazido de lá dos terreiros, aquilo era um negocio magnetizante, era mesmo, era a coisa que eu mais gosto do carnaval da Bahia.

Ai eu fui pra lá, com licença, com licença, cheguei num canto assim da praça, eu vi um grupinho, os meninos com uns turbantes branco, umas túnicas brancas, com as calças azul, eu disse:

_ É os filhos de Gandhi, filhos de Gandhi é azul e branco.

Me aproximei de um deles e disse assim:

_ Meu irmão venha cá! Como é que tá o afoxé ? e tal, todo animado.

Ele fez:

_ Afoxé tá pra acaba!

Eu disse:

_ Tá pra acaba?

Ele fez:

_ É, afoxé não dá mais pé, afoxé não dá mais pé, esse ano quase que não dá, ano que vem eu acho que não vai dá.

Eu disse:

_ E porque? O quê que há?

Ele fez:

_ Os direto, deram tudo pra brigar, o vice presidente qué uma coisa o presidente qué outra e tem um cara que disse que... é relações publica, não sei que diabo que ele faz, e tem um direto lá que disse esse ano que a gente tinha que compra aquele pano que não amarrota nem perde o vinco, porque, porque ah, sabe como é e pode chover e se chover não encolhe e fica tudo bonito e aquelas coisas e fica parecendo com os deputado e os ministros, sabe como é aquelas roupas, aqueles panos brilhantes não sei o que e pá pá pá.

Eu disse:

_ É.

E ele:

_ O turismo também, o departamento de turismo não quer ajudar, tá pá acabar, tá tudo ruim, esse ano cê tá vendo, só tem umas vinte ou trinta que conseguiram sair, ano que vem acho que não vai dar.

Eu fiquei, aquilo ali me chocou sabe, aquele papo, eu vim todo animado, ai eu fui pra casa meio triste, passou o carnaval e eu vim pro rio pra trabalhar.

Outro dia eu tava em casa no rio, ai eu me lembrei de novo do afoxé e disse assim:

_ Meu deus do céu o afoxé tá pra acabar! E logo a coisa que eu mais gosto no carnaval da Bahia. Como é que é.

Fiquei pensando, ah quem sabe, de repente eu disse assim:

_ Ah quem sabe?A gente sabe cantar, pelo menos um bocadinho a gente sabe cantar, se a gente cantar deus até pode escutar, claro, ele tá aqui dentro mesmo, ele escuta tudo né. Quer dizer também tem os orixás, que tão por lá por cima né? que os pessoal acha que os orixás tão lá por cima né? são os tal, os tal dos deuses né? são os deuses né? e lá os negro tem os deles, os orixá, ogum, oxum, oxum maré, Iansã, iemanjá e etc e tals. Então eu digo:

_ Quem sabe se a gente cantar, eles pode tudo se juntar lá por cima e resolver ajudar a gente, e o afoxé não acabar!

26 de abr. de 2011

Crônicas Familiares

Acendia uma vela para iluminar o caminho do morto que estava encomendado e acendia um cigarro a espera de noticias que confirmassem o que saiu nas cartas.

Quando a morte não falhava vestia-se de luto e ia aos velórios, substituía o lenço colorido por algo mórbido, os vestidos de chita por um humilde vestidinho preto e passava óleo de cozinha nas pernas ressecadas para que elas brilhassem, calçava os pés com uma conga preta e ia.

Chorava pelo morto, relembrava histórias com o falecido, quando o conhecia porque para ela não havia velório perdido, servia-se de café e as vezes fazia alguma oração para encaminhar a alma do pobre coitado, seja ele quem fosse. A tira colo sempre levava meu tio, para ambos discretamente rirem dos mortos que morriam fazendo caretas e encherem-se das comidas que se serviam nas casas, pois naquela época velava-se os mortos em sua própria casa ou de algum parente mais próximo.

Algumas vezes ia aos velórios de comboio, com ela iam meu tio, minha avó e outra tia de minha mãe, ao fim do velório ela os despachava e seguia o cortejo até onde o defunto seria enterrado, via o corpo descer a sete palmos, benzia-se, jogava um punhado de terra sobre o caixão e anotava o número do túmulo num papel qualquer, pois no dia seguinte seria aquele o que sairia no bicho.

Quando por acaso o número da lápide dava veado já morria de rir, o pior que ela dizia que os veados sempre ganhavam. Não podia esquecer-se também de anotar a placa do carro funerário, gostava de fazer mais de uma aposta. Uma em cada banca.

No dia de sua morte meu tio lhe acendeu uma vela de sete dias, um cigarro junto a um copo de cachaça e por memória a ela joga o número de sua lápide no bicho até hoje, mas nunca ganhou nada.

Na festa de casamento estavam quase todos os parentes por parte da família de minha mãe, da de meu pai estavam apenas dois tios e alguns amigos de trabalho, apesar de grande foi uma festa simples, com muita bebida e ótima comida, pois titia além de macumbeira e benzedeira era bruxa na cozinha, conhecia todos os temperos do mundo e tinha uma amizade particular com pimentas, tinha um pé plantado no jardim que dava pra rua, dizia que era pra espantar gente invejosa. Fazia de tudo na beira de um fogão, baião de dois, feijão tropeiro, galinha caipira, caldo de mocotó, tutano na panela, xuriço, fazia até formula do amor, daquelas que trazem a pessoa amada em três dias, mas sob um bom pagamento é claro, afinal tinha que dar algo pro santo.

Após o casório meu pai mudou-se para um quartinho alugado junto com minha mãe, em algum momento disso eu nasci. Com o meu nascimento tivemos que nos mudar por falta de espaço e por brigas de meu pai com meu tio, que alucinado roubava as coisas de meu pai para sustentar seu vício, parte da herança de família.

O que futuramente meu tio viria a justificar-se dizendo que o roubava como lição para que não traísse minha mãe, que na verdade queria era ter o enchido de porrada, mas só não o fez por respeito a minha mãe. De lá fomos para a casa onde passei boa parte de minha vida, e da qual estou agora partindo.

Crônicas Familiares

No dia seguinte acordei de cueca sobre o sofá da sala, durante dias ela não me dirigiu a palavra e ignorava meus agrados como símbolo de uma tentativa de desculpas e de restaurar a paz em casa.

Nunca tivemos uma intimidade, até a sua aposentadoria mamãe trabalhava demais, como ainda o fez por dois anos após aposentada. Era sua fuga das crueldades do mundo, era algo que ela podia ter o controle, seu ambiente de trabalho não era um lugar de incertezas e dificuldades sentimentais como a privacidade de uma vida particular.

Era raro vê-la sorrir com exceção a alguns risos histéricos que ela dava ao ver vídeos cacetadas nas entediantes tardes de domingo em que não trabalhava.

Certa vez perguntei a minha avó se ela sempre fora assim, minha avó disse que sim, mas que antigamente era menos desanimada. Que a amargura nasceu da separação de meus pais, e que minha ao mãe descobrir a traição de meu pai, que veio após a traição do primeiro namorado de minha mãe.

Por milhares de vezes recriei a história de amor dos dois na cabeça, atribuía imagens as versões que eram contadas pelos meus tios e minha avó, minha mãe nunca proferiu uma palavra sobre isso.

Conhecia todos os lugares, Alameda Barros onde minha mãe trabalhava e conheceu meu pai em uma das confraternizações da empresa, mas na minha versão não era a Alameda Barros do final dos anos setenta e sim a velha e imunda Alameda Barros dos anos dois mil, cheia de carros, marreteiros e suas barraquinhas de diversas bugigangas compradas no Paraguai, mendigos que invisivelmente moram pelas calçadas enquanto as madames dirigem-se em direção a Higienópolis.

Na época minha mãe ainda tinha cabelos cacheados, posteriormente ao ver uma antiga fotografia descobri que usava óculos de grossas armações transparentes. Meu pai quando não estava com o uniforme de trabalho vestia-se com camisas floridas e coloridas, nos pés ambos de bamba, se fossem nos anos dois mil talvez calçassem pares de all-star.

Na foto minha mãe sorria, talvez já houvesse conhecido meu pai, talvez ele que esteja por detrás da câmera lhe pegando de surpresa e eternizando provavelmente o único sorriso de toda a vida de minha mãe e os óculos que eu iria inserir na minha imaginação para sempre.

Mas não importa o quão imaginativo eu fosse sempre havia lacunas na minha história sobre eles. Pois só conheci o lado amargurado de minha mãe, seu amor pelas plantas e sua obsessão pelo trabalho. Era-me inconcebível a imagem de ambos trocando olhares, sorrisos, jogando conversas fora, meu pai a chamando para comerem juntos no horário de almoço como pretexto para melhor conhecê-la, lhe presenteando com discos da Elis Regina ou algo mais simples como um KCT do Roberto Carlos.

De mãos dadas descendo a Barros até a Angélica a caminho de alguma gafieira ou rock bar, ela não gostava de samba e ele não gostava de rock, ela nunca foi de beber e por isso ele só bebia quando ela estava ausente. E por volta de umas dez horas da noite ele a levava até o terminal da barra funda para que ela espera-se o “Brasilandia” ou quem sabe “Jd. Guarani” e talvez nos degraus de um ônibus tenha acontecido o primeiro beijo, que ficou com um gosto de doce despedida e a inquietante curiosidade para o dia seguinte de trabalho, onde ela ficaria sem jeito de encontrá-lo mesmo que ansiosa por isso. Nunca saberei como tal beijo aconteceu.

Minha mãe nunca entrava em tais assuntos relacionados a meu pai e ele por sua vez sentia-se envergonhado de tocar em assunto que a envolvessem, principalmente na minha presença.

E após alguns anos de namoro e noivado, mesmo contra a vontade de minha avó casaram-se. O casório ocorreu na paróquia de nossa Senhora da Freguesia do Ó, com a festa no casarão de uma tia de minha mãe, uma prima de minha avó que era viciada em jogatina, principalmente em jogo do bicho.

Uma nordestina da pele queimada, com ares de cigana, lenço na cabeça e longos vestidos de chita e chinelas, com um pé na umbanda e outro no catolicismo, mas sempre envolvida com qualquer tipo de misticismos e mandingas.

Ela que havia advertido minha avó para que não tolera-se a união, pois havia visto um futuro desastroso no baralho e para certificar-se levou minha avó aos búzios para que ela mesma visse por sua própria conta e com mais de tipo de advertência divina.

Era levada numa bebida e puxada numa caipora, fumava e bebia como ninguém, botava muito beberrão pra dormir e ainda ria-se feito pomba gira, mas jamais esquecia-se de seu terço dependurado sobre o pescoço. Terço que enterrou mais de três gerações de todo o bairro, para sustentar seu vício no bicho fazia serviço de mesa branca e lia tarô, quando previa morte era uma alegria que só.

Crônicas Familiares

E com ele faleceu também uma planta frágil e de flores rosadas também vitima da mesma praga, que até hoje não sei o que causou tal luto. Cada uma daquelas flores eram como filhas para minha mãe, na sua velhice cheguei a acreditar que cada uma delas até possuía um nome e as que não possuíam nome tinham toda uma cadeia genealógica e histórica, essa é de uma mudinha que dona Maria me deu de uma planta que ela ganhou da nora casada com o seu filho mais velho, aquela é de uma mudinha que eu pedi para a vizinha de uma planta que ela me disse que era bom para fazer um escalda-pé, ou aquela que era bom para tirar o mal olhado, uma pra chamar dinheiro, outra pra espinhela caída e em cada uma delas séculos de uma medicina popular que minha mãe com o tempo passou a crer fielmente.

Não me lembro a história que carregam os esporângios daquelas folhas grandes e verdes da planta favorita de minha mãe, no corredor que dava para o quintal e por fim para a rua estavam todas as mudanças mais pessoais, enfileiradas assim como antigamente ficavam os vasos, dentro daquelas caixas estavam guardadas todas as minhas lembranças com mais trabalhoso cuidado feito de papelão e metros incontáveis de fita adesiva, e dentro das caixas minhas coisas todas enroladas em edredons e dentro deles pedaços de noticias protegiam meus objetos mais preciosos.

Os sentimentos eram catalogados nas laterais das caixas com uma tinta vermelha e rabiscada e em letras colossais e tortas, fotos, livros, CDs, papeis, cadernos, roupas e por fim uma de diversidades, aonde ia todos aqueles sentimentos materializados do quais não soube definir.

Coloquei as caixas mais brutas na caçamba de um velho caminhão e retornei para buscar as mais frágeis, e estranhamente a sortida era uma delas, enquanto levava uma por uma para o banco traseiro do carro de meu amigo que me auxiliava ia recriando mentalmente o que havia em cada caixa, levei primeiramente a de fotos e todos aqueles recortes da minha vida, recriava minhas fotos favoritas, de dias inesquecíveis, alguns bons outros ruins, eu, meu primo e um tio, ambos sobre as quedas de uma cachoeira no interior do Paraná, mas na minha mente a foto ganhava vida.

Meu tio com aquele sorriso malicioso herdado do cafajeste de meu avô paterno, do qual nunca conheci, meu primo, filho do irmão de meu pai com uns pneus de gordura caindo sobre a apertada sunga preta presa por um elástico branco e um enorme óculos escuros e eu com um sorriso tímido, uma bermuda rasgada e pequenos filetes de sangue escorrendo do joelho ralado.

Havia caído minutos antes, todos estavam divertindo-se nas águas quando escorreguei em uma das pedras e gritei algum palavrão como porra! ou caralho!

Meu primo caiu-se a rir como uma hiena selvagem e dando soquinhos na superfície da água, meu tio deu uma risada esporrada até lembrar-se de averiguar se eu havia me machucado, levantei-me com o joelho latejando e todo esfolado, em segundos meu sangue começou a destilar-se na água que corria em direção em algum lugar e com ela levava meu sangue para o desconhecido, talvez até para outros estados.

Ainda tentando conter o riso meu tio aproximou-se de mim e ao perceber que os estragos haviam sido mínimos desembestou a rir tão alto como meu primo, e ironicamente me perguntou se estava tudo bem, segurando o choro lhe respondi rindo que sim para que não me tornasse o centro das maliciosas atenções de meu primo, o que foi inevitável.

Na noite daquele dia meu tio perturbou toda a felicidade de nosso passeio com sua bebedeira, herdada do pai que nunca conheceu o avô que minha avó amorosamente amaldiçoou até o dia de sua morte. Mas aquela não foi a única bebedeira de meu tio, suas sextas-feiras possuíam setenta e duas horas que acabavam em manchas de barro no tapete da sala de minha avó e camisas sujas de vômito, vinho e algo mais.

E foi assim até sua morte.

Suas noitadas criaram em minha mãe traumas enormes, e a cada copo de bebida que eu colocava a boca, ela refletia em mim a imagem de meu tio e muitas foram as nossas discussões a cada vez que eu chegava cheirando a cerveja, cigarro ou as chagas de meu tio e por mais que eu sempre a dissesse que éramos pessoas diferentes com convicções e modos diferentes pra ela o medo de tal herança familiar era muito mais forte, tão forte quanto as estraladas que arderam em minhas costas marcadas pelas espadas de São Jorge que minha mãe havia agressivamente retirado do quintal para me bater no dia em que tomei meu primeiro porre, enquanto a água fria caia, eu estava sentado no chão do banheiro com o cu sobre o ralo e as pernas arriadas todas vomitadas, nu como vim ao mundo.

Na minha frente estava minha mãe com as enormes folhas de espada de São Jorge, os olhos embotados de lágrima e maquiagem e me condenando como condenava ao meu tio, que não aceitaria levar a mesma vida submissa e angustiante que minha avó levava com meu tio, apesar do seu nervosismo mamãe ponderava-se nos palavrões, sempre foi muito educada e completamente fechada para o mundo e de um puritanismo exarcebado.

Crônicas Familiares

I

A porta cerrou-se enclausurando todo o vazio da casa, no miolo a chave girou entre minúsculas peças e engrenagens de ferro e mínimas quantidades de óleo ou qualquer tipo de graxa. Na boca metálica uniam-se as dentições da chave e com eles o segredo que guardava todos os outros, uma porção de segredos.

Eu olhava para minha mão semi-fechada sobre aquela junção de segredos, os pequenos pêlos sobre as costas de minha mão, e na raiz de cada um deles um ridículo poro, quase insignificante, tão imperceptível quanto os polens de uma flor, como aquelas que enfileiravam-se no corredor ao lado da porta que eu acabava de fechar. Eram diversas e de diversos tipos, reino, filo, subfilo, classe, ordem, família, não, aliás, acho que essas classificações só servem para os animais, mas eram de uma variedade incrível.

Samambaias, girassóis, lírios que infelizmente sempre morriam, um pezinho de hortelã, manjericão, um pé de arruda que infelizmente também nunca vingava, toda vez que saia minha mãe arrancava-lhe um chumaçinho e o enfiava entre o peito e o sutiã e com a mão direita fazia o sinal da cruz três vezes, sobre a testa, sobre o rosto e sobre o peito, habito herdado de minha avó. Que sempre nos dizia que a arrudinha num vingava por culpa de muito “ôio gordo”. Havia também uma de lindas e enormes folhas verdes da qual até hoje não sei o nome, aquela era a sua favorita.

A única herança de minha mãe a qual dou valor, o resto não me importa muito, todo o resto que só me trará aborrecimentos, assim como a diabete que ganhei de presente da família do meu pai a única lembrança que me restou de minha outra avó, que infelizmente nunca cheguei a conhecer, dela herdei a diabetes e uma linda goiabeira que vivia no quintal, mas que hoje já não existe mais.

Retirei a chave do miolo, pus a no bolso da calça e conferi se a porta realmente estava fechada, uma estúpida mania que sempre possui, girava a chave duas voltas completas a retirava e imediatamente dava dois solavancos na maçaneta para conferir se tudo estava certo, por vezes me batia de repente um impulso uma cegueira que me fazia fugir a memória, e após fazer todo esse ritual perguntava-me se havia trancado a porta e como desencargo de consciência lhe dava mais um solavanco na maçaneta de metal, isso quando não me encontrava parado já no fim do quintal e próximo a rua questionando-me se havia trancado a porta devidamente, tranquei, está trancada, mas na dúvida sempre acabava não me convencendo disso e retornava confuso até a porta para conferir tudo novamente. Acredito que certo dia deva ter ido e voltado umas duas vezes para certificar-me sobre o devido trancamento da porta.

Passei a mão sobre o bolso da calça para conferir se a chave ali também estava, com os dedos sentia-a em relevo entre o tecido da calça e o tecido de minha perna ou melhor entre as diversas camadas de tecido, da minha pele, da calça e do bolso. No chão ainda havia as marcas de terra dos antigos vasos de flores, o jardim urbano de minha mãe havia desmembrado-se, o lírios iam para o lixo nos deixando apenas seu vaso com terra para que tentássemos a sorte com outras plantas, bem, em uma dessas tentativas algo brotou, mas não sei mais qual dos vasos e nem o que vingara naquele vaso anti-lirios, acredito que seja lá o que tiver vingado lá esteja agora no jardim de meu tio, fiquei com o pé de hortelã, pois eu que o havia plantado e por isso era como um filho pra mim e fiquei também com a planta das lindas folhas verdes, é como minha mãe pra mim.

Cada um daqueles vasos e plantas possuía uma história, quais minha mãe conhecia todas de cor e salteado e no inicio de sua velhice costumava contar a todos com carinho em frente a xícaras de café e bolinhos que ela mesma fazia, quando não lhe doíam as pernas.

Tento me lembrar das histórias, mas a cabeça só me vem a dos lírios que sempre morriam, e de um pé de girassol que eu plantara uma vez que também não deu muito certo, o regava com carinho, enfeitei seu vaso com pedrinhas e conchas que havia trazido da praia, a cada descida ao litoral trazia um presente para meu girassol, mas um dia manchas negras apareceram em suas folhas e como uma criança doente ele começou a murchar e parar de correr atrás do sol, as manchas que no inicio eram pequenas e pareciam pequenos carrapatos começaram a expandirem-se, fiz de tudo o possível para curar meu pobre filho, mas com o tempo suas folhas tomadas pelo negro da desconhecida peste começaram a cair, uma por uma.