31 de mar. de 2011

Romance moderno II

Ela estava sentada nos degraus mordiscando as unhas quando ele chegou. “Que feio, roendo as unhas” ele lhe disse retirando a mão dela da boca e lhe dando um beijo no rosto. “Não tô não” ela retrucou e completou “estou mordendo a pelinha do canto, seu chato” ele acenou a cabeça em positiva ironia e se sentou ao lado dela.

Ela afagou a mão ao braço dele e o provocou. “Pode olhar.” Ele colocou a mão sobre a dela e disse que não havia importância e lhe perguntou sobre seu dia. “Nada demais” ela disse e inconscientemente recolocou a mão na boca e se policiou timidamente antes que ele percebesse. Sutilmente guardou a mão no bolso e não parava de pensar em como a censura lhe instigava a arrancar até os tocos dos dedos se possível.

“E o seu, como foi?”, com indiferença ele chacoalhou os ombros e disse “normal” com uma voz que parecia debruçar-se com dificuldade para transpor os dentes e fazer-se sólida palavra escorrida no tempo.

“Que legal heim!” ela jogou naquele vazio e riu. E ficaram os dois sozinhos ele um degrau a cima dela em sua contemplação vazia e ela relembrando um samba que despercebida ritmava com leves batidas do pé no chão dois degraus abaixo.

“Me dá um abraço” ela disse com ar infantil lhe olhando com timidez, ele levantou-se e desceu dois degraus para ficar a altura dela e abriu os braços, ela levantou-se e o abraçou e ainda continuava mais baixo que ele. E o abraçou fortemente como se aquilo fosse fundi-los criando algo novo que desconstruísse o descompassado silêncio.

“Me abraça direito!” ela disse antes dos braços dele magicamente reviverem dum sono disperso daquele instante em que os corpos eram maiores que as vozes lá fora. “Está tudo bem mesmo?” interrogou-o afastando um pouco a cabeça do pulsante peito dele, “você tá um pouco pra baixo” concluiu voltando a recostar-se no peito dele, podia ouvir seu coração palpitar, ela reproduzia para si mesma Tum Tum Tum levando a língua ao céu da boca a cada T, podia imaginá-lo por dentro.

Mas não era suficiente, não podia vê-lo e no vácuo da essência dele dava a luz a imagens diversas do que aquilo poderia ser. Ele, e seus eus incógnitos, seus amores passados, seus amores futuros com mulheres que ainda nem existiam e quais ela acabava de conceber a vida como uma deusa e voltando a sua mortalidade perdia as forças sobre suas criações que agora a perturbavam Tum Tum Tum.

Ele afogou a mão aos cabelos dela e inclinou-se para trás para ver seus pequenos olhos, que eram de um castanho que pareciam não ter parentesco algum com os verdes olhos da irmã, mas que eram de uma timidez muito mais bela e sincera.

“Não é nada Lô” ele disse com uma doçura que pareceu forçosa caridade para afagar a preocupação que a consumia, ainda não tinha a coragem de lhe dizer o que se passava, o que se passa. Soprou-lhe o rosto numa inútil luta com a franja que teimava em mascarar um daqueles pequenos olhos e com um leve gracejo deitou parte da franja sobre a orelha dela, que lá ficou como morta num leito vizinho, sem epitáfio, sem nada.

“Porque você não veio ontem?” ela disse e antes que ele pudesse responder ela completou a frase que parecia ter ficado engasgada por um singelo ... “fiquei preocupada com você, seu viadinho!”.

“Não foi nada” disse ele agora a abraçando com toda a pouca força dos braços mirrados, enquanto continuava a olhar para os olhos dela.

Tentava desvendar os traços que ele entristeceu sem culpa, que agora o fazia sentir-se tão culpado por sua indiferença, quis beijá-la, mas conteve-se na cruel dúvida daquele estranho amor, queria beijá-la e beijá-la e de maneira que ela não percebesse que embriagava-se no cheiro dos cabelos dela.

Mas sentia-se inseguro do que sentia por ela e medroso em magoá-la e mais reticente ainda por deixá-la evaporar de sua vida como o orvalho que dorme sobre as folhas restando apenas a umidade dos lábios intocáveis.

“Te procurei, até perguntei de você praquela sua amiga bonitona e espicha, como é o nome dela mesmo?” aquela, aquela alta, de olhar misterioso, deve ter vários homens aos pés dela, pensou ela com uma malicia retraída.

Ele ainda abalado com os próprios pensamentos esqueceu-se de respondê-la e recomeçou a falar, com um sentimento sintético que o incomodava, não conseguia sentir-se natural, mas necessitava daquilo.

“Estava com saudades” ele disse sem respondê-la, ela ainda a espera da resposta perguntou. “Como é o nome daquela sua amiga bonitona mesmo?”

“Ana?”

“Acho que sim” respondeu ela e deu uma leve pausa e olhou fixamente para os olhos dele, em seguida os desviou daqueles instigantes olhos e sussurrou, com um tom que pedia licença para existir. “Eu também estava com saudades de você”

Ele abraçou-a mais uma vez sentindo-se um traidor, Judas de Querioti, mas de bolsos vazios, pensava e sentia tantas coisas, queria dizê-las. Que gostava dela e muito, mas que era mais apegado àquela amizade, como o décimo segundo apostolo à suas moedas. Mas queria amá-la, lhe dizer que queria apaixonar-se, mas como diria isso sem transformar todo o seu amor num ato de esmola? Ou rebaixá-la ao papel de moça carente sem lugar nas histórias de amor.

Olhou-a mais uma vez e agora ela sorria um riso tão belo que o machucava. E de repente tirou do bolso um papel compacto em diversas dobras e lhe pôs no bolso da camisa. “Toma e não lê agora.” Ele questionou a “porque?”.

Com a tampa da pequena mão impediu que ele retirasse o bilhetinho do bolso. “Tenho vergonha, lê depois, depois que eu for embora, por favor”.

Ele tentou retirar o papel do bolso mais uma vez e ela o abraçou impedindo o furto do segredo sepulcral , como ultima tentativa ele a amoleceu com doces cócegas pelo corpo e num rápido movimento retirou o bilhetinho do bolso e o segurou com os dedos numa altura em que ela não alcançasse.

“Vou ler agora!” disse ele e riu.

Quando ele ameaçou a ler o papel ela interviu, “não tem problema, não tem nada demais mesmo” e fez uma expressão que ele não sabia se era fingimento ou desafio.

Foi quando receoso completou o bilhete de fantasias e abalou-se no que ali pudesse existir, disfarçou um atraso e disse. “Então tá, leio depois, agora preciso ir, te vejo na hora de ir embora?” Ela ainda sorria quando fez que sim com a cabeça.

Os dois abraçaram-se e seguiram seu rumo.

Ao perderem-se de vista ele imediatamente abriu o bilhete e o leu, havia tanto carinho, ela toda doce, mas sempre contida como que com medo pelo que sente, um medo tão grande que ele precisou reler o bilhete diversas vezes tentando desmascarar um sentimento do outro, o que foi inútil.

E colocava para si sobre o que sentia por ela, a carta o havia feito decidir-se enfim repetia com a boca silenciosa, ensaiava o que diria para ela.

Ela por sua vez estagnava-se no tempo na incontrolável ansiedade de saber qual seria a reação dele ao bilhete, não sabia se havia transmitido o que sentia realmente por ele, agora nem sabia mais, tentava convencer-se do que não sentia e sintetizava tudo isso para si mesma “tanto faz, tanto faz, tanto faz, tanto faz, tanto faz.”

O tempo matou o expediente com cronológico atraso diferente em cada relógio da repartição. Ela acelerou o passo na intenção de não o vê-lo e quando saia pelo saguão do prédio ouviu. “Lô!”

28 de mar. de 2011

O nascimento. (pt1)

O alho triturado dourava na panela quando a batucada começou, porque do alho eu não sei, talvez fosse como se quisesse exorcizar qualquer coisa ruim que estivesse comigo. O batuque gritava em meio a roda, as mulheres dançavam com todo seu esplendor e os homens batiam palmas e remexiam as pernas timidamente.

A noite já esquecera-se da lucidez do sol, aos cantos pessoas falavam com deus e em diversas maneiras, até mesmo aqueles que nem possuíam um.

A loucura era já uma entidade boa e libertadora, as latas se abriam com dedos calejados e a cerveja descia com a refrescante fuga do calor nos corpos amontoados e atentos a toada.

A roda era o núcleo da vida, o coração, que pulsava com seus tambores bombeando uma estranha vitalidade, e o suor escorria pelos rostos cansados e felizes. A cerveja transpirava em minha mão, percorrendo todo o corpo da lata e mesclando-se aos meus líquidos que me abandonavam a cada instante a cada respirar.

Eu era invadido pelo calor e a tímida vontade de me jogar à roda me libertando por completo, inclusive de meu próprio pudor.

O galpão rústico e improvisado expandia-se de maneira mística como se a cada passada o mundo se dilatasse, dilatava-se por conta do calor, talvez aquilo fosse a vida acontecendo na sua mais ridícula forma de viver e simplesmente isso.

Nas paredes gravuras e desenhos obscenos que figuravam toda a liberdade que se impunha com fé irreal, todos os pintos e vaginas sem mistérios à cultuação de toda aquela essência pura e animal, que disfarçamos em banheiros nulos e privadas higienicamente hidrocloretadas .

E também ícones esquizofrênicos em meio a frases impactantes e a escassa luz que incorpora o lindo ritual de purificação, o calor era tão grande que achei que pelo suor me sairiam as impurezas. O galpão era formado por dois grandes cômodos um maior repartido com algumas divisórias de escape e o outro divido em mais uma parte que dava para uma pequena cozinha aos fundos.

Na pequena cozinha a cerveja gelava banhada em gelo no ventre de caixas improvisadas e na pia suja cascas e pedaços de frutas faziam o mosaico que registrava o trabalho na confecção das bebidas mais fortes, pinga com frutas e batidas de amor.

Cambaleando me colocava nas possibilidades de redenção, do que eu não sabia e ainda não sei, havia grupos debatendo questões políticas, e essência de deus, a essência da essência e questionando até o próprio questionamento com retóricas embriagadas.

Foi quando estava a ponto de algum tipo de sintética sublimação que os tambores cessaram.

Do centro da roda ela emergiu do cimento batido, linda e transcendental, a saia amarrada na cintura e caída sobre as finas pernas, uma camisa de algodão sem as mangas que realçava seu corpo mirrado e dançante, a bolsa cruzando o colo despendia-se próximo ao ventre, e que com coreografada sutileza ela recolocava as alças sobre o ombro nu e ossudo.

E sorria, com a expressão de que já não era mais mulher, e sem saber ainda o era. Divina enunciava o menu da noite, as sugestões de passos que disfarçava com a saia que era orientada pelos quadris e gentis puxões das leves e firmes mãos sem tintura, sem esmaltes.

Com as unhas na mais bela e pura cor de simples unhas, e na coloração não de criança ingênua, mas de mulher segura com sua meiguice.

E assim ela girava registrando tudo com seus olhos neutros e profundos, rasgados de incontáveis transformações, e nos olhos uma marca estranha e oriental,de bruxaria fugida da inquisição, talvez a milésima encarnação de Cleópatra ou a caixa de pandora lacrada entre os cílios mortais.

Fui sugado pelo seu magnetismo e me juntei as camadas do coração selvagem da dança. Com um sorriso inocente e uma malicia contida ela hipnotizava a multidão e cantava as regras do rito.

Um casal por vez ela dizia e puxava um ingênuo rapaz da camada interior do círculo e entre passos o rodeava o envenenando com os olhos sutis, com a mão em seu ombro e ainda sorrindo para todos dizia, homens dêem um tapinha no ombro do parceiro e o tirem da roda e nesse instante puxando um outro guri de rosto atrevido o manipulava na retirada do ingênuo rapaz que ainda a olhava vazio.

Já as mulheres, acrescentou, se retira na umbigada disse com todo orgulho e ênfase de mulher atrevida, e com as delicadas mãos puxou agora uma linda mulher e casou seu umbigo ao dela, os dois ventre vazios se completando. E assim deixou a roda deixando a linda mulher aos encantos do guri que agora tinha o rosto mais atrevido ainda.

E saiu da roda desnudando-se da magia, caminhava tranquilamente entre os olhos que já voltavam-se atentos para a roda de novo.

Distribuindo sorrisos ela passava tomando um gole aqui, dando uma pitada ali e desapareceu na cozinha dos fundos. Em pouco tempo retornou com um saco nas mãos e uma lata de cerveja, sentou-se ao lado dos fortes homens que davam vida aos tambores e serena começou a beber sua cerveja.

...

24 de mar. de 2011

RE#6

Pequena.

Já são quase duas horas da madrugada mas o sono não me vem, pensei em te ligar mas com essa distancia a tarifa fica cara e o dinheiro anda curto. Poderia te mandar um email, mas cortaram a internet por atraso no pagamento, por isso me pego escrevendo essa carta a mão nas folhas restantes de um velho caderno rabiscado.

Talvez a internet volte antes dessa carta lhe chegar em mãos, ai então te mandarei um email que em menos de um minuto percorrerá todos esses kilometros que me separam de um abraço teu. Com essa modernidade poderíamos até nos falar em tempo real, ouvi dizer que há um novo programa que funciona como se fosse um telefone, poderíamos ficar horas ao telefone, ou melhor, ao computador jogando conversa fora, procurarei me informar sobre tal novidade, o mundo anda tão rápido que eu com a minha pouca idade já me sinto obsoleto em relação à essas tecnologias.

Ana perguntou-me de você e quase que instantaneamente corou por pensar que ainda era cedo pra tocar no seu nome comigo, fingi não ligar e lhe disse que não sabia noticias suas, ela desajeitada inventou algum papo qualquer pra disfarçar a gafe e a prosa prosseguiu, ah você viu que calamidade que aconteceu no Japão? me perguntou ela, e nessa hora eu não conseguia pensar em outra coisa que senão você e me perguntar como andariam as coisas por ai, acho que aquele foi o sêmen desta carta. Sêmen, que palavra mais sem jeito.

Acho que ali senti vontade de conversar contigo, mas ainda rola aquele orgulho estranho em te procurar, ai fico na esperança de que você me procure, que quase sempre acaba sendo apenas esperança. Tá ai uma palavra que me incomoda mais que sêmen.

Quanto a Ana, acredito que vocês tenham contato, mas pelo fato dela me perguntar de ti acredito que devo também estar enganado, bem, ela anda bem, continua com aquele rapaizinho fotógrafo acredita? foi tudo tão de repente que as vezes nem consigo acreditar, e ela me parece super bem, problemas financeiros e profissionais nunca acabam né? mas as coisas vão indo.

Pensei em te mandar algumas coisas que andei escrevendo, mas todos os meus últimos textos foram recusados e acho que definitivamente desisti de escrever, aos poucos aquele idealismo artístico me foi sumindo, era a coisa que eu mais previa e temia e nem sei como isso foi acontecer. Continuo trabalhando, adoro as minhas crianças, passar horas com eles supre aquela coisa estranha de sentir que nunca serei um pai de família e também infelizmente não farei mais aquela viagem ao exterior devido a problemas financeiros.

Infelizmente também tenho bebido demais, tenho passado muita raiva na escola, amo minhas crianças o mais difícil é contornar os adultos.

Ontem houve uma mudança de horários e jogaram todas as minhas aulas pro fim do período, sendo que todos sabiam que eu só poderia ficar até a metade do período por causa da faculdade.

Elaborei todo um discurso para conversar com minha diretora, primeiramente veria se a coordenadora não poderia quebrar meu galho, o que foi inútil, ai decidi ir até a diretora lhe disse tudo o que queria, claro que com um certo respeito dependo dessa grana né, disse que sabia que determinado assunto não era função dela mas como ninguém conseguira resolver meu problema resolvi ir até ela que era a autoridade maior na escola, ela fez que “ahn” ou algo parecido com a cabeça e aqueles dentes amarelados de cafeína e nicotina misturadas, não consegui definir se aquilo era um não ou um sim irônico ou o caralho que o fosse!

Lhe mostrei meu horário e todos os tramites que estavam prejudicando, ela continuou com aquela cara de cavalo de dentes amarelados.

Então comecei, veja bem, só posso ficar até o quarto tempo porque depois disso preciso ir para a faculdade, mas a coordenadora disse que como essas aulas não são livres minhas e sim uma substituição eu teria que seguir o horário que ela havia colocado, eu contra argumentei que não fazia lógica, não, disse que não era coerente que a escola desse preferência aos horários para um funcionário que havia se ausentado da escola para assumir outro cargo e eu que estava ali, presente, fazendo parte já do corpo docente ficasse em plano secundário, ela fingiu não entender e eu continuei, dizendo que o outro funcionário havia escolhido ir para outro cargo por vontade própria e que devia assumir os riscos, ela me cortou falando que o horário precisava ficar assim causo o outro funcionário não se adaptasse a nova escola e quisesse voltar, eu fiquei puto, e lhe disse que eles não deviam dar prioridade pra um filho da puta, não, não disse filho da puta mas foi o que eu quis dizer, enfim, disse que ela não devia priorizar alguém que não a prioriza, nessa hora me senti numa discussão de relacionamento e daquelas que a gente começa já sabendo que não vai dar em merda nenhuma.

Expus toda essa burocracia e o ódio de toda a minha impotência para a diretora, ela abriu um leve sorriso eqüino acendeu um cigarro, e me disse, desculpe meu anjo, com todo essa melação que me deixou mais enraivecido ainda, desculpe meu anjo mas eu não posso fazer nada por você fofo.

Num momento de fúria me demiti, esta bem, te confesso não estou mais dando aulas, por isso que minha viagem ao exterior se adiara e também não tenho mais internet, não devia te contar isso, acontece que não contei pra ninguém, nem mesmo Ana sabe, não quero que ela se preocupe, ainda tenho uns fundos pra sobreviver até me ajeitar, infelizmente não receberei seguro desemprego por ter me demitido.

Gostaria de te escrever mais, mas preciso dormir, amanha preciso procurar emprego bem cedo, espero que me mande notícias, mesmo que sejam ruins, me fale de como estão as coisas ai, como está o emprego que você tanto almejou, os novos amores, eu não me importo mais, quer dizer, não que não me importe de não me importar, digo que já superei e somos bons amigos ou seremos.

Aguardo respostas, beijos do teu nego.


Ps* encontrei Pedro outro dia na rua e ele quase chorou ao lembrar de você, tente dar uma ligada pra ele, por favor.

Ps* as vezes sonho contigo, o que também foi um dos incentivadores de lhe escrever essas palavras.

24 de março de 2011.