Ela estava sentada nos degraus mordiscando as unhas quando ele chegou. “Que feio, roendo as unhas” ele lhe disse retirando a mão dela da boca e lhe dando um beijo no rosto. “Não tô não” ela retrucou e completou “estou mordendo a pelinha do canto, seu chato” ele acenou a cabeça em positiva ironia e se sentou ao lado dela.
Ela afagou a mão ao braço dele e o provocou. “Pode olhar.” Ele colocou a mão sobre a dela e disse que não havia importância e lhe perguntou sobre seu dia. “Nada demais” ela disse e inconscientemente recolocou a mão na boca e se policiou timidamente antes que ele percebesse. Sutilmente guardou a mão no bolso e não parava de pensar em como a censura lhe instigava a arrancar até os tocos dos dedos se possível.
“E o seu, como foi?”, com indiferença ele chacoalhou os ombros e disse “normal” com uma voz que parecia debruçar-se com dificuldade para transpor os dentes e fazer-se sólida palavra escorrida no tempo.
“Que legal heim!” ela jogou naquele vazio e riu. E ficaram os dois sozinhos ele um degrau a cima dela em sua contemplação vazia e ela relembrando um samba que despercebida ritmava com leves batidas do pé no chão dois degraus abaixo.
“Me dá um abraço” ela disse com ar infantil lhe olhando com timidez, ele levantou-se e desceu dois degraus para ficar a altura dela e abriu os braços, ela levantou-se e o abraçou e ainda continuava mais baixo que ele. E o abraçou fortemente como se aquilo fosse fundi-los criando algo novo que desconstruísse o descompassado silêncio.
“Me abraça direito!” ela disse antes dos braços dele magicamente reviverem dum sono disperso daquele instante em que os corpos eram maiores que as vozes lá fora. “Está tudo bem mesmo?” interrogou-o afastando um pouco a cabeça do pulsante peito dele, “você tá um pouco pra baixo” concluiu voltando a recostar-se no peito dele, podia ouvir seu coração palpitar, ela reproduzia para si mesma Tum Tum Tum levando a língua ao céu da boca a cada T, podia imaginá-lo por dentro.
Mas não era suficiente, não podia vê-lo e no vácuo da essência dele dava a luz a imagens diversas do que aquilo poderia ser. Ele, e seus eus incógnitos, seus amores passados, seus amores futuros com mulheres que ainda nem existiam e quais ela acabava de conceber a vida como uma deusa e voltando a sua mortalidade perdia as forças sobre suas criações que agora a perturbavam Tum Tum Tum.
Ele afogou a mão aos cabelos dela e inclinou-se para trás para ver seus pequenos olhos, que eram de um castanho que pareciam não ter parentesco algum com os verdes olhos da irmã, mas que eram de uma timidez muito mais bela e sincera.
“Não é nada Lô” ele disse com uma doçura que pareceu forçosa caridade para afagar a preocupação que a consumia, ainda não tinha a coragem de lhe dizer o que se passava, o que se passa. Soprou-lhe o rosto numa inútil luta com a franja que teimava em mascarar um daqueles pequenos olhos e com um leve gracejo deitou parte da franja sobre a orelha dela, que lá ficou como morta num leito vizinho, sem epitáfio, sem nada.
“Porque você não veio ontem?” ela disse e antes que ele pudesse responder ela completou a frase que parecia ter ficado engasgada por um singelo ... “fiquei preocupada com você, seu viadinho!”.
“Não foi nada” disse ele agora a abraçando com toda a pouca força dos braços mirrados, enquanto continuava a olhar para os olhos dela.
Tentava desvendar os traços que ele entristeceu sem culpa, que agora o fazia sentir-se tão culpado por sua indiferença, quis beijá-la, mas conteve-se na cruel dúvida daquele estranho amor, queria beijá-la e beijá-la e de maneira que ela não percebesse que embriagava-se no cheiro dos cabelos dela.
Mas sentia-se inseguro do que sentia por ela e medroso em magoá-la e mais reticente ainda por deixá-la evaporar de sua vida como o orvalho que dorme sobre as folhas restando apenas a umidade dos lábios intocáveis.
“Te procurei, até perguntei de você praquela sua amiga bonitona e espicha, como é o nome dela mesmo?” aquela, aquela alta, de olhar misterioso, deve ter vários homens aos pés dela, pensou ela com uma malicia retraída.
Ele ainda abalado com os próprios pensamentos esqueceu-se de respondê-la e recomeçou a falar, com um sentimento sintético que o incomodava, não conseguia sentir-se natural, mas necessitava daquilo.
“Estava com saudades” ele disse sem respondê-la, ela ainda a espera da resposta perguntou. “Como é o nome daquela sua amiga bonitona mesmo?”
“Ana?”
“Acho que sim” respondeu ela e deu uma leve pausa e olhou fixamente para os olhos dele, em seguida os desviou daqueles instigantes olhos e sussurrou, com um tom que pedia licença para existir. “Eu também estava com saudades de você”
Ele abraçou-a mais uma vez sentindo-se um traidor, Judas de Querioti, mas de bolsos vazios, pensava e sentia tantas coisas, queria dizê-las. Que gostava dela e muito, mas que era mais apegado àquela amizade, como o décimo segundo apostolo à suas moedas. Mas queria amá-la, lhe dizer que queria apaixonar-se, mas como diria isso sem transformar todo o seu amor num ato de esmola? Ou rebaixá-la ao papel de moça carente sem lugar nas histórias de amor.
Olhou-a mais uma vez e agora ela sorria um riso tão belo que o machucava. E de repente tirou do bolso um papel compacto em diversas dobras e lhe pôs no bolso da camisa. “Toma e não lê agora.” Ele questionou a “porque?”.
Com a tampa da pequena mão impediu que ele retirasse o bilhetinho do bolso. “Tenho vergonha, lê depois, depois que eu for embora, por favor”.
Ele tentou retirar o papel do bolso mais uma vez e ela o abraçou impedindo o furto do segredo sepulcral , como ultima tentativa ele a amoleceu com doces cócegas pelo corpo e num rápido movimento retirou o bilhetinho do bolso e o segurou com os dedos numa altura em que ela não alcançasse.
“Vou ler agora!” disse ele e riu.
Quando ele ameaçou a ler o papel ela interviu, “não tem problema, não tem nada demais mesmo” e fez uma expressão que ele não sabia se era fingimento ou desafio.
Foi quando receoso completou o bilhete de fantasias e abalou-se no que ali pudesse existir, disfarçou um atraso e disse. “Então tá, leio depois, agora preciso ir, te vejo na hora de ir embora?” Ela ainda sorria quando fez que sim com a cabeça.
Os dois abraçaram-se e seguiram seu rumo.
Ao perderem-se de vista ele imediatamente abriu o bilhete e o leu, havia tanto carinho, ela toda doce, mas sempre contida como que com medo pelo que sente, um medo tão grande que ele precisou reler o bilhete diversas vezes tentando desmascarar um sentimento do outro, o que foi inútil.
E colocava para si sobre o que sentia por ela, a carta o havia feito decidir-se enfim repetia com a boca silenciosa, ensaiava o que diria para ela.
Ela por sua vez estagnava-se no tempo na incontrolável ansiedade de saber qual seria a reação dele ao bilhete, não sabia se havia transmitido o que sentia realmente por ele, agora nem sabia mais, tentava convencer-se do que não sentia e sintetizava tudo isso para si mesma “tanto faz, tanto faz, tanto faz, tanto faz, tanto faz.”
O tempo matou o expediente com cronológico atraso diferente em cada relógio da repartição. Ela acelerou o passo na intenção de não o vê-lo e quando saia pelo saguão do prédio ouviu. “Lô!”